Wednesday, October 25, 2006

Monday, October 23, 2006

PADRE ODÍLIO LOPES DE MELO GALVÃO

Talvez tenha sido o político de maior influência de todo o Sertão Central à sua época. Carregou a bandeira da União Democrática Nacional (UDN) contra o Partido Social Democrático (PSD) com a flegma dos grandes líderes. Para eleger um deputado estadual, bastavam os seus sermões aos domingos nas missas. Receitava remédios e os dava grátis. Também distribuía com os pobres, leite em massa, conhecido como ‘leite do padre’. Hipnotizava as crianças e os tolos. Além do mais era padre.
Tinha um serviço de som, estilo alto falante, que funcionava como rádio. Tanto era utilizado para dar notícias religiosas, como expressava diretamente o pensamento político do padre. E assim sua fama corria o mundo afora naquele sertão. Ganhou a campanha para Prefeito da cidade de Senador Pompeu, no ano de 1962, com uma maioria esmagadora. Decidido a candidatar-se faltando poucos dias para o encerramento das inscrições partidárias, padre Odílio chegara de Roma, com escala em Fortaleza, onde tinha ido visitar sua Santidade o Papa Paulo VI, num avião denominado de teco-teco. A multidão que o esperava no campo de aviação logo se transformou em passeata rumo à cidade. O padre em pé num jipe modelo 52 acenava para todo o povo. A passeata, depois de percorrer as principais ruas da cidade, terminou como um dos maiores comícios políticos na praça da matriz. Ninguém tinha mais dúvidas da vitória do padre, as apostas acabaram.
É importante lembrar que o padre, antes de ser Prefeito, fez o hospital, trouxe escolas, construiu os prédios do ginásio Cristo Redentor e Nossa Senhora das Dores, enfim, quase todos os pleitos reivindicados por ele eram atendidos pelo Governador do Estado, Coronel Virgílio Távora. Senador Pompeu vivia sua maior safra de algodão. Tínhamos as seguintes fábricas de beneficiamento do ouro branco: usina São Geraldo; Sical; Casa Machado; União Algodoeira Exportadora Jucá; Algobol – Algodoeira Borges Ltda – etc. Existiam bons invernos com alta produção de milho, feijão e o leite da vaca preta. Era uma época de fartura, muita chuva e frutas, e o melhor é que não se falava em inflação. A região parecia caminhar rumo ao progresso.
No entanto, quando o padre Odílio assumiu a direção do executivo municipal, algo estranho e nebuloso passou a atormentar a vida política e cotidiana daquela pacata cidade. Primeiro seqüestrou o Presidente da Câmara, Dr. Rogério, seu opositor. Não satisfeito com a desenvoltura e competência do Dr. Rogério, na tarde de um dia de agosto de 1965, acompanhado de dois capangas, o padre aplicou-lhe um murro de manopla na face de seu oponente, causando-lhe sérios danos físicos, somente sendo corrigidos através de plástica e platina. Detalhe: o padre não conseguiu reeleger nenhum correligionário. Dr. Rogério, logo depois, foi eleito Prefeito de São João de Jaguaribe, mostrando sua popularidade e credibilidade por onde passava.
Por volta das seis horas de uma manhã de domingo, durante a missa celebrada por padre Salmito, foi ouvido um estampido de um tiro de revólver. Logo em seguida, soube-se que o Geraldo, misto de motorista e capanga do padre, havia matado o vereador Raimundo do Fumo, depois de persegui-lo e executá-lo dentro do café de dona Gervina. A lógica dos boatos na cidade era que o Geraldo não tinha nenhum motivo para matar o vereador, mas como o vereador Raimundo do Fumo fazia cerrada oposição ao prefeito...
A cidade estava em polvorosa. Mulheres apaixonadas pelo padre brigavam no meio da rua, os capangas se digladiavam uns com os outros trocando balas em plena praça pública; o padre sofria um atentado a bala por uma de suas apaixonadas; comentava-se o rápido enriquecimento do padre; a prefeitura estava em bancarrota administrativa; a questão moral e ética implicava diretamente na questão religiosa em estado de descrença; o padre conseguiu virar sua personalidade junto com a cidade de cabeça para baixo.
O padre Odílio estava para o Sertão Central (Senador Pompeu) assim como o padre Cícero esteve para a região sul do Estado (O Cariri). Sua pregação era pura profecia, sua opinião virava preceito de fé, sua popularidade fora unânime, pena que tudo isso não passou de fogo fátuo. Desmoronou-se o mito do padre Odílio como o gelo em contacto com os primeiros raios do sol. O candidato indicado por ele, para sucedê-lo na prefeitura, foi um completo fiasco eleitoral. Estava selado o seu destino político: a indiferença e a solidão. O padre não se deu bem com o poder, a exemplo de tantos outros que não se dão bem com o dinheiro e com a felicidade. Morreu com certeza angustiado, morreu do coração.
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JOSÉ MARIA SARAIVA NOGUEIRA

‘Vai boiadeiro que a noite já vem, leva o teu gado e vai pra junto do teu bem’. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.

Eram três horas da madrugada quando invariavelmente exalava da cozinha um cheiro de café. A porta dos fundos fechava-se, a volta da chave arranhava na fechadura, e os estribos da cela batiam como sinos de igreja. Aqueles sons denunciavam que papai estava saindo para o curral, ia tirar o leite das vacas, nosso sustento. Ficaram no ar o cheiro do seu suor e o brilho de seu sorriso. Era que em sua ausência invadia-me um medo cheio de escuro e do tamanho da morte.
Eram cinco horas da manhã quando seu retorno se dava, montado a galope, de bom humor, falando alto com suas estórias gozadas e repetitivas, mas que, em sua versão, pareciam novas; ele contagiava a todos. Fazia do seu modo simples de viver o centro das atenções do seu mundo. Seu estado puro d’alma curava as mazelas de mamãe. Esse clima nos fazia despertar para um bom dia, ainda que equilibrados no fio psicológico do trapézio da vida.
Eram quinze horas de sertão, com secas e pobrezas, quando o corcel, a novilha e o mandacaru aguardavam-lhe para o trágico acidente que o obrigou a amputar sua perna direita, abaixo do joelho. Esse corte profundo em sua juventude rasgou o âmago de seu ser que procurava superar-se, contando piadas de sua própria situação manca.
Eram dezesseis horas de uma tarde qualquer de verão, antecedendo um ano de bom inverno, com sua perna mecânica – quem não o conhecesse, jamais percebia -, com seu cavalo alazão, quando sua estrela brilhava mais reluzente nas vaquejadas dos legítimos vaqueiros. Era um grande encontro de muita animação e troca de idéias, de forró e mulher. Embora sem tomar um gole de cachaça, ele era do pagode, da brincadeira e das morenas faceiras.
Eram nove horas de um sábado de prestação de contas da safra de algodão, já entregue na usina. Suas contas nunca batiam com as do proprietário da fábrica, ele sempre saía devendo. Ainda por cima, soube que seu filho caçula andou pulando da ponte do trem para o espaço do rio Banabuiú, cheio; como se não bastasse, levou um coice da égua Melada; doutra, eram os calos de sua perna que afloravam. Tudo, além da incompreensão dos limites da vida, era motivo para ficar amuado, com lundu, como denominávamos a depressão, outrora.
Eram oito horas da manhã, quando papai era o homem mais bonito do mundo, em nossos piqueniques colegiais, no sítio Lazarêto, acompanhados pelas professoras e freiras que não se cansavam de elogiar a beleza física de ‘seu Zé’. Nada comparado ao aperto de sua mão para atravessar uma rua, e seu andar de cabeça erguida a vislumbrar um horizonte de estudo e trabalho, orgulho de um homem simples.
Eram seis horas da tarde, e, como era comum em sua mesa, faziam-se refeições com os trabalhadores da fazenda, do tempo de meu avô: o Raimundo ‘Cabaça’, o velho Pinheiro e o embolador ‘Buiú. Aquilo, sim, era mais que belo, era uma verdadeira comunhão.
Eram onze horas, quase meio dia, e alguém lhe falou que um parente seu estava passando necessidade. Ele ouviu tudo calado. Como era de seu estilo, em silêncio agia. Mandava tirar dos tubos uma saca de feijão, comprava uma saca de arroz, outra de açúcar, quem sabe umas redes, e estava feito um comboio. Pedindo reservas sobre seu nome, seu sobrinho ia entregar.
Eram doze horas do dia, o sol quente a castigar o tempo e os homens. Ele fazia o sinal da cruz e, humildemente, pedia proteção a Deus para seus filhos.
Eram sete horas, e a boca da noite mansa carregava as lembranças de papai. Por essa época, não tinha mais mãe e procurei aproximar-me do meu pai. Decidi beijá-lo. Dizendo assim, parece fácil. Mas não era. A forma como fomos educado, sob o tacão machista, impedia-nos de qualquer gesto de afeição. Todo o cuidado! Aquele beijo poderia ser uma afronta. Ia viajar e fui despedir-me. Primeiro, ele abençou meus filhos: gestos formais. Chegou a minha vez. Ele abençou e continuei com a mão estirada, segurando a sua; ele me encarou um pouco assustado. Em seguida, coloquei por trás de sua cabeça minha mão esquerda. Naquele instante ele deu um sorriso sem graça. Aproximei-me mais ainda e beijei-lhe as faces. Aquele beijo marcou a minha vida. Se eu soubesse que o meu amor e a compreensão da vida iriam atingir níveis tão profundos, em razão de um beijo, não teria perdido tantas madrugadas com medo do escuro, da solidão e da morte que fez hora à meia-noite.

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ESPÍRITO SANTO

Quem há de lembrar da velha zeladora que limpava os banheiro e varria as salas e os corredores do Grupo Escolar Martins Rodrigues, em Senador Pompeu? Além de pobre, preta. De onde veio aquela criatura? Ninguém sabe. Os moradores mais antigos da cidade se arriscam a dizer que ela procedia do Maranhão ou da Bahia, ‘repare no jeito dela carregar a lata d’água na cabeça’.
Seu nome era Espírito Santo, pronto. Não tinha da ‘Silva’e nem de ‘Sousa’, no sobrenome. Como se não bastasse, a Nega Veia era perseguida por uma professora que implicava em jogá-la no olho da rua, sem dó e nem piedade. Foi preciso a doce Cristina Pessoa, ao assumir a direção da escola, apaziguar os ânimos, feito um anjo da guarda, e protegê-la, até sua aposentadoria.
Muitas vezes me deparei com ela, parada e em silêncio, em frente lá de casa. Ficava assim, sem falar, como era o seu costume, o tempo que fosse necessário, não era do seu feitio incomodar. Sua comunicação com a meiga Cristina era telepática e, logo, logo, mamãe mandava que eu levasse a cesta de São Vicente de Paula para a casa de dona Espírito Santo.
Essas cestas continham arroz, feijão e farinha ou apenas frutas, tudo coisas de lavra da fazenda de meu pai. Uma ou outra vez a cesta ficava pesada, mamãe me incumbia de carregá-la, até sua casa. Ao chega na porta da casinha de taipa, me espantava com o que via, meus olhos percorriam os cômodos e, no meio daquela algazarra, ficava sem entender nada. Quase não havia móveis: um ou outro tamborete, uma mesa, pedaços de caixões e várias redes armadas, com pessoas dentro, e que a gente nunca conseguia vê-las, pois estavam sempre enroladas em seus molambos de panos. Espalhados por toda a casa havia muitos cachorros, gatos, pombos, galinhas e porcos, de onde exalava um mau cheiro que empestava o ambiente.
A casa da Espírito Santo era um mistério no meu mundo de criança. O espetáculo da convivência de pessoas e animais, dentro do mesmo espaço físico, me causava sobressalto.Confesso que, ao mesmo tempo em que aquela casa me atraía, ela também me repulsava. A verdade é que eu morria de medo do seu aspecto, de uma certa forma, tenebroso. Tenho certeza de que esse clima de pavor mexia com todos os meninos da rua. Foi, então, que um dia, ao ver uma mulher que se desenrolava dos panos, e cheia de ferida pelos lábios, nariz e os dedos dependurados, saí em disparada. Perguntei tudo sobre a casa da Espírito Santo, à mamãe. Suas respostas, em tom calmo e tranqüilo, me dissiparam todos os receios. Aquela Senhora, dizia ela, tinha um coração enorme e cheio de amor, tanto pelas pessoas, como pelos animais. Ela simplesmente recolhia cães e gatos rejeitados da rua e os punha em abrigo. E as pessoas deitadas nas redes, escondidas, são doentes de lepra, e que não têm onde passar seus últimos dias de vida, ou por falta de assistência do estado ou por preconceito da sociedade, diante de uma doença incurável. Fiquei, mais uma vez assustado, desta vez pela grandeza do ser humano que era a digna dona Espírito Santo.
Assim era a Espírito Santo, a seu modo, procurando imitar São Francisco, o pobre de Assis. Poucas pessoas vão lembrar que na cidade de Senador Pompeu, existiu essa senhora com tamanha solidariedade, gesto simples, humilde e anônimo, de pés descalça, com o terço nas mãos e um infinito amor pela obra de Deus.